Aliás, o próprio termo "social-democracia” gerou alguma
polêmica, já que, em certas regiões do mundo, especialmente na América do Sul,
é um rótulo que foi apropriado por partidos de direita ou centro-direita. E não
estou falando do velho PSD de Benedito Valadares, uma coalizão de interesses
oligárquicos, com vagas pretensões industrializantes, formada quando da queda
da ditadura de Getulio Vargas, que deveria originalmente chamar-se "Partido
Democrático”.
Mas era o final da Segunda Guerra e a União Soviética
emergira como uma das grandes vencedoras na luta contra o fascismo. A sabedoria
(ou melhor: esperteza) política levou um dos líderes da nova formação a dizer:
vamos botar "social” no nome; está na moda.
Refiro-me a versões mais modernas, como a que emergiu da
dissidência do PMDB, que, mais que um partido, era uma grande frente
democrática que englobava várias tendências. Assim, o PSDB, embora já
demonstrasse inclinação pelo que se veio a denominar de "neoliberalismo”,
pretendeu dar uma coloração política mais definida a uma das facções do
conglomerado de forças que se juntaram para combater a ditadura. À sua esquerda
já existia o Partido dos Trabalhadores, o que contribuiu para que os nossos
sociais-democratas sequer buscassem um disfarce mais progressista.
Na Europa, entretanto, a social-democracia tem raízes
históricas, que remontam às lutas operárias do século XIX. Mesmo tendo se
afastado (sobretudo ao apoiar financiamento aos gastos militares na Primeira
Guerra Mundial) de ideais internacionalistas, conservou uma agenda reformista,
que ajudou a construir o Estado de Bem-Estar. E muitos (se não todos)
sociais-democratas foram importantes aliados dos movimentos de descolonização e
tentativas de emancipação econômica no Terceiro Mundo.
Mas, hoje, quais são as reais bandeiras da
social-democracia? E que respostas dão aos desafios que atormentam muitos dos
seus países, como terrorismo, desemprego, movimentos migratórios e questões
ecológicas? Mais importante: a quem dirigem sua pregação por um mundo que não
seja totalmente dominado pelo lucro fácil, pela exploração dos trabalhadores
(nacionais ou migrantes), pelo tráfico de armas e pelo uso unilateral da força?
Curiosamente, durante o debate, a expressão "classe
trabalhadora”, em torno da qual se estruturaram os movimentos sociais do século
XIX, e que persistiu como um conceito organizador até décadas recentes, mal foi
pronunciada. Assim, a busca pela construção do socialismo democrático (fórmula
que prefiro à desgastada social-democracia) parece carecer não só de
posicionamentos claros em torno dos temas já citados (e, mais, a situação da
mulher, as mudanças climáticas, a governança democrática, o desarmamento e o
comércio justo), mas de uma melhor definição sobre as "agências de
transformação” da sociedade.
Serão essas agências os próprios partidos políticos, que
passam a representar interesses difusos, não ligados a uma posição específica
na estrutura econômica? Ou conjuntos ainda mais vagos, definidos em termos
geracionais ou de comportamentos individuais? Sem dúvida, há muita perplexidade
a respeito dessas questões. Estamos muito longe das convicções que levaram os
socialistas dos dois últimos séculos a apostar no papel redentor do
proletariado industrial.
Isso, naturalmente, não significa que inexista a percepção
das injustiças criadas e reproduzidas pelo sistema capitalista, sobretudo em
sua versão financeira e especulativa. Injustiças que se replicam no nível
local, nacional e global. Mas como juntar todas essas vítimas da desigualdade,
todos esses despossuídos, oprimidos ou abandonados: os refugiados (econômicos
ou políticos), os trabalhadores submetidos a regime similar à escravidão, os que
sofrem de discriminação de qualquer espécie?
Esse problema, complexo em si mesmo, torna-se mais grave em
países como o Brasil, cujas estruturas políticas não permitem uma
representatividade efetiva dos mais pobres, dos negros, das mulheres, das
minorias, em geral. Se não é possível conceber hoje uma verdadeira democracia
que não seja efetivamente "social”, tampouco se pode pensar em um socialismo
que não tenha suas raízes na democracia.
É importante ter eleições, sem as quais qualquer governo
carece de legitimidade. Mas é importante que as próprias eleições sejam
legítimas, de modo que a "voz do povo” se faça ouvir e seja respeitada. O
caminho para a democracia e o socialismo é longo, incerto e cheio de percalços.
Mas é mister percorrê-lo, superando obstáculos e desmistificando falsas
soluções, como as privatizações massivas, o congelamento das despesas em saúde
e educação, o encolhimento do Estado e a renúncia à soberania. Para tanto, não
basta o combate à corrupção, por importante que seja. É necessária uma profunda
reforma das instituições políticas que diminua – ou se possível suprima – o
peso do capital nas eleições. Ao lado de "Diretas Já” temos de gritar:
"Constituinte exclusiva já!" *Celso Amorim para Carta Capital |