Um dos fundadores do evento, o arquiteto Francisco Whitaker,
acredita que o fórum transcendeu a mera contraposição ao Fórum Econômico de
Davos, na Suíça, também realizado em janeiro, e o próprio debate entre
políticas de esquerda e direita.”A estratégia de tomar o poder tem dado
demonstrações de que não funciona. Em quantos lugares os governantes entram e
depois decepcionam? A começar pelo Brasil”, questiona.
Portanto, para Whitaker, apesar de ainda valer a máxima de
que "um outro mundo é possível” mote do FSM desde a sua primeira edição , o
propósito do evento é mais um espaço de reconhecimento mútuo do que um
movimento novo. "A descoberta foi que podemos trabalhar juntos e, juntos, somos
mais fortes.”
A premissa vale justamente na realização do FSM no Canadá.
"O que se descobriu é que os problemas são exatamente os mesmos. O que se passa
atualmente com a pobreza, o clima, as armas, acontece tanto nos países do Norte
quanto do Sul. Onde se pode discutir o problema das imigrações? É no Norte”,
defende Whitaker.
Perfil
Francisco Whitaker Ferreira, conhecido também como Chico
Whitaker, nasceu em São Paulo em 1931. É formado em arquitetura e urbanismo
pela Universidade de São Paulo. Durante a ditadura, exilou-se por 15 anos no
Chile e na França. No Brasil, foi assessor da Confederação Nacional dos Bispos
do Brasil, trabalhando com Dom Paulo Evaristo Arns. Foi membro do Plenário Pró
Participação Popular na Constituinte, cuja ação levou às Emendas Populares à
Constituição de 1988.
Foi vereador por dois mandatos em São Paulo, pelo PT. É
membro da Comissão Brasileira Justiça e Paz e do Movimento de Combate à
Corrupção Eleitoral. Foi cofundador, em 2001, do Fórum Social Mundial, e
atualmente é membro do seu Conselho Internacional. Recebeu em 2006, na Suécia,
o Premio Nobel Alternativo (Right Livelihood Award). Em maio de 2012, foi
incluído na Lista Anti-Forbes, das "100 pessoas que mais enriquecem o mundo”. É
membro da Coalizão por um Brasil Livre de Usinas Nucleares.
Entrevista
Jornal do Comércio – Que balanço o senhor faz destes 15 anos
de existência do Fórum Social Mundial?
Francisco Whitaker -O fórum, em primeiro lugar, foi
uma bruta de uma inovação, no sentido da sua metodologia. Ele tem uma outra
proposta, pois não se organizava se cima para baixo. Então, por exemplo, ele
não tem um tema. O tema é "um outro mundo é possível”. E em torno disso,
convidamos pessoas e, principalmente, organizações que estão atuando para mudar
o mundo, para tratar dos temas que elas julgassem importantes. Inclusive, até
hoje, muita gente não entende. Nós mesmos fomos descobrindo com o tempo qual
era a especificidade de nossa proposta, e era essa de fazer um fórum que não é,
nem pretendia ser, uma organização ou um movimento novo. Pretendia ser um
espaço. No fundo, estávamos abrindo um espaço para as pessoas se encontrarem.
Muita gente que vinha para o fórum achava que era a grande
oportunidade para se criar um novo movimento. Inclusive trotskistas, que
criaram as quatro internacionais, diziam que estávamos criando a quinta. Mas
nós, que estávamos nessa organização, achávamos que por aí não se chegaria a
nada. Principalmente pelo fórum ser um espaço no qual as pessoas poderiam se
reconhecer mutuamente. O fórum foi feito em um momento em que Davos estava em
imensa expansão, como a única alternativa para dizer o que fazer no mundo. E
nós dizíamos que não, que existem alternativas diferentes e gente que já mudava
as coisas. Era muito interessante, ao longo do processo, quando alguém vinha e
dizia "escuta aqui, vocês não estão tratando do tema mulheres”. Se você não
veio propor, nunca será tratado. Só é tratado aquilo que as pessoas trazem.
Isso mostra o processo do fórum ao longo dos 15 anos.
JC – Era uma horizontalidade que as pessoas não conheciam
ainda.
Whitaker -E não conhecem até hoje. Até hoje dou
entrevistas e o pessoal pergunta "quais foram os temas que vocês escolheram?”.
Nós não escolhemos nada. Na verdade, é a soma dos temas que são trazidos que
conduz o conteúdo. Isso fez com que, ao longo dos anos, novos temas emergissem
de forma muito líquida. O fórum de 2009, por exemplo, que foi em Belém, foi o
centro de uma problemática ecológica. Lá na Tunísia, foi muito em torno da
democracia e da dignidade. Era um lugar que, em si mesmo, era o centro da
mudança e derrubada de ditaduras na construção de uma democracia que
respeitasse as pessoas. Isso surgiu por efeito local. Ou seja, era evidente
que, no Norte da África, estavam se passando coisas muito importantes. A
Primavera Árabe estava em plena eclosão.
JC – Esses desdobramentos são frutos do fórum? O que os
movimentos como Ocuppy ou a própria Primavera Árabe devem ao FSM?
Whitaker -Não só a este fórum. As eleições no Brasil
também foram ganhas pela dinâmica criada pelo fórum. O ex-presidente Luiz
Inácio Lula da Silva (PT) teve o apoio muito grande das pessoas que
participavam desse processo. A descoberta foi a seguinte, podemos trabalhar
juntos e, juntos, somos mais fortes. O fórum cria essa oportunidade e a
ocasião. Eu gosto muito da ideia de "reconhecimento mútuo”. Se há uma coisa que
enfraquece a chamada esquerda é a divisão dela, a lógica da conquista da
hegemonia. O que eles (Occupy e Primavera Árabe) pegaram do fórum? A
horizontalidade, que é uma das propostas fundamentais. Ou seja, nenhuma
atividade ganha caráter de atividade central, seja ela feita por uma enorme
organização mundial ou por um grupinho que está trabalhando uma temática
completamente nova. Todos têm o mesmo tempo e espaço. Às vezes, o mais
importante é uma coisa totalmente nova, como a temática dos bens comuns, que
identifica que o que é de interesse geral não pode ser controlado por uma
pequena parcela da sociedade.
JC – O primeiro fórum era um contraponto a Davos. Ao que o
Fórum Social Mundial se contrapõe agora?
Whitaker - Cada vez mais, o sistema neoliberal está
forte. A lógica econômica do sistema capitalista está contaminando o mundo
todo, principalmente após a queda do muro de Berlim, que encerrou a experiência
socialista. O consumismo, por exemplo, é o mecanismo fundamental do sistema,
que depende totalmente de que a gente consuma.
JC – Mas isso está sendo bastante contestado atualmente.
Whitaker - Esse é o nosso trabalho. Uma das coisas mais
tristes que aconteceram no Brasil foi que o Bolsa Família tirou muita gente da
miséria, mas os colocou como consumistas. No fundo, isso tinha que ser
acompanhado por uma revolução cultural. Agora, não precisa que o fórum faça
isso. A humanidade vai tomando uma tamanha consciência, que surge uma reação a
isso. Temos que mudar nosso sistema de consumo. Se o mundo inteiro, ou mesmo só
a China, entrar no modelo norte-americano de consumo, a Terra se transforma em
um grande latão de lixo, e se acabam com os recursos da humanidade. Isso tudo
foi a consciência que se tomou em Paris, na COP-21. A novidade dela é que temos
de mudar nosso sistema, nosso modelo de produção, pois, se isso não acontecer,
a mudança climática destruirá um monte de lugares e criará um monte de
problemas. Mas, no fundo, às vezes, as pessoas ficam com nostalgia. "Poxa, nós
éramos a antítese da Davos e agora não somos nada.” Mas o Fórum Social Mundial
tem sido um processo cavalar de expansão dessas ideias, da revisão de tudo.
JC – O FSM mudou muito para além do debate sobre esquerda e
direita. Além da questão ambiental, que outras variantes entraram?
Whitaker - Acho que a variante da democracia, também. A
ideia de democracia somente representativa, com a limitação que ela tem. A
questão dos partidos. No mundo inteiro, partidos estão em uma baixa desgraçada.
A credibilidade do sistema político é zero, atualmente. Isso está sendo
levantado no fórum. Discutiremos isso em um seminário que será feito em
Marrocos, independentemente do FSM. Que estratégias temos que pensar para
realmente podermos mudar esse mundo? Até agora, estamos perdendo, mas alguns passos
estão sendo dados. A COP-21 é um deles, com todas as limitações. A questão das
migrações é outro tema que começou a se levantar nos três fóruns que houve na
África.
A nostalgia de se ter um fórum que seja a cabeça de um
movimento novo, isso acabou. Inclusive a estratégia de tomar o poder tem dado
demonstrações de que não funciona. Em quantos lugares os governantes entram e
depois decepcionam? A começar pelo Brasil. O que aconteceu nos países
latino-americanos? O Rafael Correa (Equador), o (Hugo) Chávez (Venezuela)? O
próprio Evo Morales (Bolívia) disse que é um filho do fórum. E agora ele está
sendo obrigado a fazer coisas para que o sistema não engula ele de uma vez, e
fazendo o quê? Mantendo o sistema, sendo levado a abrir usinas nucleares na
Bolívia. Na França, o Partido Socialista é eleito para mudar o sistema e passa
a ser o governante típico do outro lado.
JC – Pela primeira vez, o FSM será realizado em um país
considerado desenvolvido, no Canadá. Como essa mudança marca o evento?
Whitaker - Os primeiros fóruns, que aconteceram em
Porto Alegre, eram para dizer que essa é uma luta do terceiro mundo, do mundo
subdesenvolvido. O que se descobriu, ao longo desses anos todos, é que os
problemas são exatamente os mesmos e são totalmente interligados e dependentes.
Ou seja, o que se passa atualmente com a pobreza, o clima, as armas, acontece
tanto nos países do Norte quanto do Sul. É preciso que um monte de gente de lá
(Norte) descubra a realidade que se está vivendo. E é maravilhoso que o fórum
vá para o Canadá, já que Occupy foi um movimento de jovens que aconteceu lá
também. Então foram dois coelhos com uma cajadada só. Primeiro, mudamos para o
Norte com a problemática de imigração. Segundo, o fórum está sendo tocado não
por grandes organizações internacionais, mas por jovens que organizaram os
Ocuppy do Canadá. Havia gente tanto com grandes argumentos para dizer que não
podia ir para lá, quanto havia para dizer que pode. Mas o problema é o mesmo.
Onde se pode discutir o problema das imigrações? É no Norte. Onde as pessoas
que migram não são aceitas, são rejeitadas e discriminadas? A Europa e outros
países se tornam fortalezas.
JC – A questão do extremismo religioso também tem ligação
com o tema da migração e permeou o último FSM, na Tunísia, que foi precedido de
um atentado a bomba. Como isso será abordado no FSM em 2016?
Whitaker - Uma semana antes do fórum, fizeram esse
atentado. Fizeram isso para arrebentar a economia do único país na região que
conseguia manter a democracia. E eles estavam em um processo bonito. Isso
poderia ter gerado também a suspensão do fórum, mas as organizações que
participaram da preparação do evento acharam que tinham que realizá-lo assim
mesmo. Foi uma decisão unânime, e foi um dos fóruns mais bonitos que já
tivemos. E durante aquele fórum, houve um monte de oficinas discutindo o Islã
político, que não é só religião, é também partido. O número de muçulmanos, no
mundo todo, que estão tentando diferenciar a sua religião disso (extremismo) é
enorme. Esse tipo de assunto vai ser discutido no Canadá também. Fica cada vez
mais claro que a estratégia de tomar o poder pelas armas já passou. Quem mais
ganha com as guerras e revoluções são os fabricantes de armas, é um sistema em
que não há condições de sair. Países como a Suécia, que todos citam como um
país maravilhoso, é um dos grandes fabricantes de armas do mundo.
JC – O Brasil pode voltar a abrigar o fórum principal?
Whitaker - É melhor que o Fórum Social Mundial seja
feito em outro país. Foi um processo que todos preferimos não fazer mais no
Brasil, pois sentimos que já era um processo mundial. Nos fóruns, 80% dos
participantes são pessoas da região onde ele se realiza. Só 20% vêm de fora.
Então, a percepção de realizar o FSM em países como Tunísia e Índia era para
criar essa dinâmica. Entretanto, a partir do primeiro fórum, muita gente
percebeu a riqueza da dinâmica e foi fazer fóruns regionais, nacionais, locais.
Em 2013, foram realizados 40 fóruns de tipos diferentes. Estou participando
atualmente da organização de um fórum temático sobre energia nuclear, que vai
acontecer no Japão no ano que vem.
JC – É um lugar onde essa realidade está pungente.
Whitaker - As próprias pessoas do lugar é que propõem.
Os japoneses se deram conta de que estavam fragmentados e querem reencontrar
convergências entre eles. Em todos esses lugares, como Japão, Chernobyl, ou na
França, é preciso criar uma rede mundial de gente que luta contra a questão
nuclear, e em todos esses lugares os movimentos são divididos.
*Lívia Araújo – Jornal do Comércio
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