O trecho acima é uma das passagens do livro A Era do Capital Improdutivo (Outras
Palavras & Autonomia Literária), do economista Ladislau Dowbor,
professor titular de pós-graduação da Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo (PUC-SP). Na obra, ele mostra que o ponto fundamental que
define o cenário econômico e social da maior parte do mundo não é
propriamente a falta de recursos financeiros, mas sim sua apropriação
por corporações que utilizam esses recursos para especular em vez de
investir de forma produtiva. Uma esterilização que aprofunda as
desigualdades e desenha um horizonte sombrio para o futuro do planeta.
Dowbor analisa uma estrutura em rede nada
trivial, na qual as corporações transnacionais dominam a (não)
competição de mercado e põe o tempo todo em risco a estabilidade
econômica, à mercê de seus interesses. Isso apoiado não em teorias da
conspiração, mas em dados e pesquisas de instituições que mostram uma
gigantesca estrutura na qual grande parte do controle flui para um
núcleo diminuto e fortemente articulado de instituições financeiras, uma
verdadeira "superentidade".
"Ao vermos como nos principais setores as
atividades se concentraram no topo da pirâmide, com poucas empresas
extremamente poderosas, começamos a entender que se trata sim de poder
no sentido amplo. Agindo no espaço planetário, na ausência de
governo/governança mundial, frente à fragilidade do sistema político
multilateral, as corporações manejam grande poder sem nenhum contrapeso
significativo", diz Dowbor no livro. "Com efeito, menos de 1% das
empresas consegue controlar 40% de toda a rede.” Trata-se de
instituições financeiras como Barclays Bank, JPMorgan Chase&Co e
Goldman Sachs.
É esse exercício constante da captura do
poder – seja ele político, jurídico ou midiático – que faz com que as
grandes corporações continuem lucrando às custas de aplicações que não
servem ao conjunto da sociedade. E que desestabiliza economias e
governos como, segundo Dowbor, aconteceu com o Brasil.
Em seu livro, o senhor fala do poder extremamente concentrado dos
grandes grupos corporativos, com uma gigantesca concentração da riqueza
no planeta e que opera por meio de mecanismos financeiros, o que
resultou também na captura do poder político por esse reduzido grupo.
Como chegamos a esse sistema de apropriação por uma minoria tão reduzida
sem as pessoas se darem conta disso?
As pessoas não entendem mecanismos financeiros. Quando você compara
em uma loja um produto com outro, quando te oferecem uma prestação de R$
69,99 e outra de R$ 79 ao mês, em geral não se vê muita diferença. O
cálculo atuarial não faz parte da nossa cultura e, no sistema de
educação brasileiro, nunca se teve uma aula sobre a moeda, que é o
principal estruturador da sociedade. Então, há um desconhecimento
profundo dos mecanismos financeiros.
Fazer aplicações financeiras – comprar papéis, não se produzindo
nada – rende em média, no mundo, 7% ao ano. Sem esforço nenhum, apenas
pagando uma pequena comissão a uma entidade de intermediação, corretores
financeiros, coisas do gênero. O progresso da produção não é de 7% ao
ano, só a China tem esse índice, mas, no mundo, esse ritmo gira em torno
de 2% a 2,5% ao ano. Ou seja, produzir rende muito menos do que as
aplicações financeiras.
Quem faz aplicações financeiras são os ricos. As pessoas sequer sabem
o que é ganhar 7% ao ano sobre capital parado. Se você tem um bilhão de
dólares e aplica a uma modesta taxa de rendimento de 5% ao ano, ganha
137 mil dólares ao dia. Quando o bilionário ganha 137 mil dólares por
dia, isso entra na conta dele diariamente, e esse dinheiro se incorpora
aos 5% que estão rendendo. Vira uma bola de neve e você passa ter uma
massa de capitais improdutivos, imensa, que é drenada dos processos
produtivos pela razão de que esse tipo de dinheiro vai atrás de onde
pode render mais. Não só rende mais na aplicação financeira, como rende
mais sem precisar de esforço, obviamente isso acaba descapitalizando o
setor produtivo.
Ao mesmo tempo, tem-se o aumento da desigualdade, porque o 1% ou um
décimo de 1% enriquece de maneira fenomenal, mas esse dinheiro não se
reverte em investimento em bens e serviços. Tem-se ao mesmo tempo o
aumento de desigualdade e uma relativa estagnação econômica.
Nesse sentido, é um capital improdutivo que está no título do livro.
É um capitalismo, pelo menos para as grandes corporações que dominam esses mecanismos financeiros, sem risco.
Eles podem ter risco, mas o capital tem risco quando a pessoa
investe, faz um projeto de construção de casas, por exemplo, investe
efetivamente em produção. Quando tratamos dos capitais improdutivos, não
falamos em investimentos, mas sim de aplicações financeiras.
O risco que existe, e forte, é sistêmico, como aconteceu em 1929 e em
2008, e, provavelmente, vai se repetir adiante. Porque, de tanto
extrair capital do setor produtivo e atrai-lo para processos
especulativos, pode haver um colapso dos papeis por insuficiência de
base correspondente produtiva.
A crise de 2008, por ter sido causada pela especulação financeira,
não foi uma oportunidade de se refletir sobre o capitalismo financeiro?
Perdemos essa oportunidade?
Está surgindo nos últimos meses de 2017 um conjunto de estudos a
respeito de como se perdeu a oportunidade. A crise poderia ter gerado
uma volta a uma certa regulação ao ordenamento do sistema financeiro. O
que aconteceu é que, de um lado, essa bolha financeira gerada pelos
grandes bancos teve seu buraco compensado com dinheiro público – cerca
de 4 trilhões de dólares nos Estados Unidos e outros tantos na Europa –
que normalmente seria destinado a investimentos em infraestrutura,
políticas sociais, saúde, educação e outras do gênero, mas foi desviado
para bancos. Esse cenário possibilitou a criação da política de
austeridade, que promove um empobrecimento da população em proveito dos
bancos.
Nesse movimento se geraram tensões políticas, mas apenas embriões de
uma possível volta a uma política de regulação. Nos Estados Unidos, se
negociou a lei Dodd-Frank, que substitui a lei que assegurou a estabilidade financeira durante 30 anos no pós-guerra, a Glass Steagall.
Logo no início da crise em 2008, se avançou com essa regulamentação, e
assim que os bancos voltaram a ter os bolsos cheios e a situação se
tranquilizou, com as populações aceitando a tal da austeridade,
começaram a liquidar a lei Dodd-Frank e se voltou ao sistema de caos
financeiro de hoje. Saiu essa semana um estudo sobre fraudes financeiras
dos grandes bancos, como as praticadas pelo Bank of America. As multas
que eles têm que pagar por fraudes e atos do gênero chegam a 340 bilhões
de dólares. Esse é o nível da fraude. Estão se sentindo à vontade de
novo, eles mesmo dizem: "happy days are back”.
A Europa tentou um movimento de regulação, mas não avançou, só um
pouco na Inglaterra. Quanto ao Brasil, o país já tinha liquidado a
regulação financeira que estava no artigo 192 da Constituição Federal de
1988 e limitava os juros e os processos especulativos. Esse artigo foi
liquidado por meio de uma PEC em 1999 e uma emenda constitucional em
2003. Não se aproveitou a oportunidade de por ordem no sistema.
Esse dado sobre as fraudes e as multas mostram que o crime compensa, já que os ganhos continuam superiores às multas...
Não só compensa como gera um poder suficientemente grande para que
esses processos se tornem legais. Por exemplo, de toda essa gente que
criou esse caos a partir de 2008, ninguém foi preso. Eles são fortes o
bastante para criar um sistema jurídico paralelo, com acordos pelos
quais as empresas pagam uma multa para a qual já fizeram provisão. Sabem
que estão fazendo errado, pagam, mas não obrigados a reconhecer culpa.
Ninguém é preso. Pagam a multa e continuam no mesmo processo. No nível
mundial, temos o Bank of America, o Deutsche Bank, o Barclays, Morgan,
todos os grandes bancos estão nesse processo. Eles têm força para dobrar
a legalidade.
O segundo eixo disso é que nós temos cerca de 60 paraísos fiscais no
planeta, e esses mesmos bancos têm um mecanismo de transferência
internacional, já que hoje não se carrega mais notas, só sinais
magnéticos. Então, quando você pega mais de 200 mil empresas no
Panamá... Como é que cabe? Você tem ilhas com mais empresas do que
habitantes.
Grande parte desses recursos migram para os paraísos fiscais, hoje,
em ordem de grandeza, são em torno de 21 a 31 trilhões de dólares, dados
de 2012, quando o PIB mundial era de 73 trilhões. O resultado é que
esses capitais que resultam das poupanças não são reinvestidos para
desenvolver o país, tampouco pagam impostos porque vão para paraísos
fiscais. E o dinheiro nem fica nos paraísos fiscais, continua nas mãos
do Bank of America, do Barclays etc e segue rendendo para os diversos
bancos. É um sistema disfuncional.
Nesse caso, de acordo com sua análise expressa no livro, é preciso
estabelecer uma governança global, já que cada país tem sua política e é
necessário controlar esse fluxo que hoje está sob domínio das
corporações.
Atualmente, os mecanismos financeiros são variados, desde os chamados derivativos, que também são chamados de transfer pricing, até o high frequency trading... Há um glossário de termos dos diversos mecanismos utilizados.
Gosto de citar o exemplo da Shell na Nigéria porque é muito simples e
faz as pessoas entenderem. O petróleo extraído lá pertence ao país e o
acordo que a Shell tem é pagar um imposto sobre seus lucros. A companhia
vende o petróleo extraído para uma empresa laranja nas Ilhas Virgens
Britânicas, a um preço muito barato, e o lucro é muito pequeno com a
transação. Em vista disso, não paga muito imposto na Nigéria. Essa
empresa laranja revende a preço cheio no mercado internacional, tem um
lucro fenomenal, e está numa ilha em que não se pagam impostos.
O fato de se desviarem os recursos financeiros da produção é um
desastre econômico. Permitir que uma imensa parte da população, apesar
das novas tecnologias e do grande esforço de trabalho, continue pobre
enquanto uma parcela mínima tem esse enriquecimento, é um problema de
justiça social, um problema ético. Mas quando as pessoas estão vendo que
não há retorno para elas, começa a gerar um caos político, não temos
mais no mundo pobres que apenas dizem "sim, senhor” e tudo bem. Por mais
que se construam muros entre os EUA e o México, entre palestinos e
israelenses, ou se coloquem mais bases militares no Mediterrâneo, o
equilíbrio político entre as regiões pobres do mundo e as ricas, e mesmo
dentro desses países, não vai ser restabelecido.
Os dois terços dos norte-americanos que nos últimos 40 anos têm
somente umas dezenas de dólares a mais na sua renda não acreditam mais
no sistema político, por isso votam no Trump, como votariam em outro. Na
França, nem os socialistas nem os republicanos, que dividiam o poder
desde sempre, chegou ao segundo turno. Os ingleses votarem de maneira
idiota e irrefletida a favor do Brexit, a Polônia voltar a um regime
fundamentalista e religioso, o caos em todo Oriente Médio... É só olhar o
mundo. Sem falar do Brasil, Venezuela, Argentina...
Se você rompe a lógica do ciclo econômico, rompe o sentimento de
justiça social, de ser remunerado quem merece. É uma ruptura sistêmica. O
dinheiro navega no planeta enquanto os governos estão se fragmentando
em 200 pontos de decisão diferentes, não há sistema que funcione dessa
maneira.
Mas esse caos que fragiliza a democracia também não dá chances para que o poder das corporações possa aumentar ainda mais?
Não tenho dúvida. E elas estão se organizando. Veja como financiam as
eleições, universidades, think tanks, estão comprando até as revistas
acadêmicas. Estão construindo a sua legitimidade, pois estão articuladas
a nível mundial, e os governos não. Inclusive o sistema multinacional,
representado pelas Nações Unidas, está sendo capturado rapidamente pelas
próprias corporações financeiras.
O senhor falou dessa estratégia de captura e existe um dado no
livro sobre a força dos lobbies, citando o exemplo da Google, contando
hoje com oito empresas de lobby contratadas apenas na Europa, além de
financiamento direto de parlamentares e de membros da Comissão da União
Europeia.
As somas são gigantescas. A Google se dá ao luxo de contratar
senadores americanos para viajar a Bruxelas e pressionar homens públicos
europeus. Há uma estruturação de poder global que, por sua vez, é
dominado essencialmente por mecanismos financeiros.
No EUA, o lobby é legalizado. Aqui, não é e acabou o financiamento
empresarial – embora seja provável que continue existindo o caixa 2 e
outras formas de burlar essa proibição. Nesse processo com impeditivos
do ponto de vista formal, a importância da mídia tradicional aumenta
ainda mais nesse jogo da captura da política por esse poder
financeiro-econômico?
Aqui a captura do poder se deu de maneira extremamente ampla. Temos a
presença das multinacionais, não sei se você reparou, mas todas as
multinacionais instaladas no Brasil financiam políticos da mesma maneira
que a Odebrecht e outras empresas nacionais, mas não há uma só
multinacional mencionada estrangeira nesse processo.
Os americanos estão intervindo pesadamente porque têm interesse em
desestabilizar o processo que estava em curso na América Latina, mas,
além da apropriação da mídia, há uma tradicional penetração dos poderes
econômicos no Judiciário. Curiosamente, o conjunto das medidas tomadas
agora, que são uma regressão para o Brasil, são ditadas por um
presidente com 5% de apoio e um Congresso eleito por um sistema ilegal,
financiado por corporações.
Visto por outro ângulo, com o presidente Lula e em determinado
momento com a presidenta Dilma, um grupo tem a presidência e diz-se que
está no poder, mas ele tem que entregar uma série de ministérios porque
não tem maioria no parlamento. Tem apenas parte do Executivo, não tem o
Judiciário, o parlamento, nem a mídia.
Quem criou essa crise é quem está no poder. Essas outras forças
tiveram a capacidade de estrangular o que o Banco Mundial chamou de
"Década de Ouro”, quando o Brasil teve resultados fantásticos.
No livro o senhor fala dos quatro motores da economia brasileira:
as exportações, a demanda das famílias, as iniciativas empresariais e as
políticas públicas. Como o poder financeiro afetou esses motores e
acabou travando a economia?
É importante entender que a gente sabe fazer funcionar a economia. Na
Europa do pós-guerra houve a elevação dos salários, fortes
investimentos em políticas sociais e infraestrutura, forte presença
reguladora do Estado. A grande demanda por parte da população gerava
mercado para a produção crescente. E era uma política financiada em
grande parte pelo Estado, mas como existia um aumento da demanda, havia
como consequência um aumento de produção e os impostos indiretos tanto
sobre o consumo quanto sobre as empresas, e os diretos sobre a renda,
passaram a alimentar o caixa estatal para que se continuasse a financiar
a dinamização da economia. Esse é o caminho. Isso funcionou na crise de
1929 nos EUA, com o New Deal, funcionava na Europa, com o Welfare State,
que depois se chamou de social democracia, e também na China, cuja
economia tem a importância dos produtos importados, mas é essencialmente
o mercado interno que domina. Funcionou na Coreia e, agora, em
Portugal, que ao invés de austeridade, que na prática é tirar dinheiro
dos pobres para dar aos ricos, dinamiza a base de consumo da população, o
principal motor da economia.
Nós temos hoje um dado mostrando que temos 61 milhões de adultos
inadimplentes no Brasil, ou seja, gente que não consegue nem pagar sua
própria dívida, quem dirá consumir. Quando se travou o consumo,
travou-se também a produção das empresas. Se vangloriam que abaixaram a
inflação, mas na verdade quebraram a economia. Travou-se a produção e
assim se gera desemprego, o que reduz mais ainda a capacidade de
consumo. O país entrou num processo descendente. Com as empresas
produzindo menos e as pessoas consumindo menos, o governo arrecada menos
com impostos. Então, o governo que chegou ao poder em nome de
restabelecer o equilíbrio fiscal está aprofundando o contrário. Corta
investimentos sociais e em infraestrutura, mas, como paralisou a
economia, isso faz entrar menos dinheiro ainda. Reduziu os gastos, mas
reduziu ainda mais as entradas. Isso é um crime contra a teoria
econômica.
Uma das principais críticas no segundo mandato de Dilma se baseava
no crescimento da relação entre dívida pública e PIB, quase um fetiche
entre economistas com viés liberal. Essa relação caiu no governo Lula e,
na crise econômica, voltou a subir. Mas entre o começo do primeiro e o
início do segundo governo FHC, essa relação dobrou...
O estoque de dívida do Japão é de 250% do PIB. Isso não tira pedaço, o
Japão está indo bem. Nos Estados Unidos, é mais de 100%. O problema não
é esse estoque – que é dinheiro das pessoas que têm dinheiro e não da
população em geral, dos bancos que têm o nosso dinheiro. Compram títulos
da dívida pública, tudo bem, só que no Brasil, quando foi criado, em
julho de 1996, o sistema de taxas elevadas de juros sobre a dívida
pública, permitiu-se aos bancos se financiarem aplicando em títulos em
vez de buscarem fomentar a economia. Naquela época o índice estava em um
patamar de 25% para uma inflação já baixa. Enquanto nos EUA é 0,5%, na
Europa é 0,75%, e no Japão é zero. Esse é o problema, quando o banco
pega o meu dinheiro, minha poupança, paga uma merreca e aplica em
títulos do governo.
O Lula pegou a Selic com 24,5%, baixou para 14%, e a Dilma baixou
isso para 7,25%. Ao mesmo tempo, ofereceu às famílias enforcadas em
juros, empresas e pessoas físicas, taxas mais baixas nos bancos
oficiais, Banco do Brasil e Caixa Econômica Federal, o que aliviou essa
população mas tirou a principal forma de ganho de todas as elites e da
classe média alta. A partir de meados de 2013, não se tem mais governo,
mas uma guerra. Aí a lógica é política, não é econômica. Foi assim que
pioraram todos os indicadores.
Naquele momento, o rentismo acabou com a conciliação política.
Perfeito. Acabou o que era representado pela Carta aos Brasileiros,
de junho de 2002, em que o Lula disse que respeitaria os contratos. O
"esquemão” que o presidente Fernando Henrique Cardoso montou era muito
simples: você corta a inflação, faz o acordo com os bancos – que
precisavam desse acordo porque, com a economia globalizada, não se
consegue entrar com uma moeda que muda de tamanho todo dia – que
perderam uma gigantesca fonte de renda à época, a inflação. Você perdia
seu dinheiro todo dia, mas o banco sempre recuperava. O que eles
perderam com inflação, Fernando Henrique entregou de volta em forma de
taxa Selic. Eles podiam ganhar 25% pagos por meio de dinheiro público. Criou-se um sistema de "desvio dos impostos”, que por lei deveriam
servir para investimentos públicos e para políticas sociais, mas
passaram a ser desviados para os bancos. Por isso Fernando Henrique foi
aumentando a carga de impostos, que era a forma de captar mais dinheiro
para transferir. E aumentou em particular os impostos indiretos, que
hoje são 56% de toda a carga tributária, que prejudica os mais pobres.
Naquele momento foi gestado um modelo para preservar os ganhos das instituições financeiras.
Exatamente. Lula, em junho de 2002, fez a Carta aos Brasileiros
dizendo que manteria os contratos, mas chegou um momento em que a
população brasileira ficaria estrangulada. Como não havia mais o artigo
192 da Constituição, o governo não tinha poder de interferência sobre a
taxa de juros de pessoas físicas e jurídicas, só sobre a Selic. Hoje,
existe uma taxa do rotativo do cartão de 480%. Uma piada. Economista que
me visita não acredita. Nós estamos frente a um sistema de agiotagem
que paralisou o país.
O senhor fala dessa questão do endividamento dos Estados nacionais
no livro, e de como as instituições conseguem acabar capturando esses
governos por conta disso. Como se dá esse processo?
No livro, cito o Wolfgang Streeck que diz: antes, o governo tinha que
responder à cidadania; agora, ele responde aos intermediários
financeiros. Antes se calculava quantos votos têm, hoje se calculam
quantos empréstimos.
É só contar a quantidade de governos eleitos pela esquerda, e com
programas de esquerda, que acabam fazendo política de direita. Não é
porque são bandidos, mas porque há uma grande pressão – e não é só uma
pressão nacional, mas mundial, já que envolve grandes bancos como o
Citibank, Santander etc. Por isso Temer não está nem aí se só 5% da
população o apoia, quem o está apoiando são os três grupos que dão a
nota de investimento para um pais. O peso externo, a confiabilidade dos
mercados pesa mais que o interesse nacional.
E os bancos recebem para dar essa nota.
Isso é denunciado pela The Economist.
O senhor falou dos governos de esquerda e da relação que se
estabelece com o poder financeiro. Como a esquerda pode sair dessa
armadilha? Existe um modelo a ser adotado hoje?
Não diria nem de esquerda, mas eu chamaria de capitalismo civilizado.
E produtivo. Você pode pegar o livro do (Joseph) Stiglitz, Reescrevendo
as Regras (Rewriting the Rules of the American Economy: An Agenda for Growth and Shared Prosperity),
e a fórmula está aí. Vai encontrar isso em inúmeras propostas, como a
do Bernie Sanders nos EUA e a do (Jeremy) Corbyn na Inglaterra.
O caminho é extremamente simples. No caso brasileiro, tem que se usar
as reservas, o compulsório, os bancos públicos, o BNDES, para reforçar
empréstimos a baixo custo para a população e para as empresas.
Dinamizando a capacidade de as famílias consumirem, mesmo aumentando o
buraco – o que não é necessário porque o Brasil tem 400 bilhões de
dólares em reservas e pode convertê-los –, reforçando o consumo das
famílias isso se traduz em consumo imediato, que vai redinamizar as
empresas, pois os estoques vão se reduzir e elas vão voltar a produzir.
Se voltar a produzir, vão voltar a empregar, temos um efeito
multiplicador. Com mais consumo das famílias e mais empregos, é mais
dinheiro em forma de impostos e isso cobre o buraco inicial. É assim que
funciona o crédito.
Não estamos em crise de capacidade produtiva, mas em uma crise de
paralisia gerada pelo sistema financeiro. O caminho é claro, não tem
mistério. O problema é conseguir o poder político correspondente para
impor isso, porque você não vai poder montar uma coisa dessas com a
população pagando 400% de juros. O banco, dentro desse tipo de proposta,
tem que voltar a ser aquilo para o qual foi criado e estava no artigo
192 da Constituição: o sistema financeiro nacional deve servir para o
desenvolvimento equilibrado do país. Coisa que qualquer banqueiro
deveria saber fazer. Você põe uma agência bancária, identifica na sua
cidade empresários locais e vê que ali tem uma fábrica de sapatos mas
não tem curtume, porque não investiram. O banco, como financiador, vai
estimular o processo produtivo e gerar lucro para o dono da empresa, que
vai poder pagar o empréstimo. Ou seja, é o banco a serviço do
desenvolvimento, e não o desenvolvimento a serviço do banco. Acaba com o
que os americanos chamam de "o rabo abanando o cachorro”.
Para concluir, o senhor citou, nesse aspecto de modelos, Sanders e
Corbyn, mas nenhum brasileiro. A esquerda brasileira pensa pouco na
economia?
Não. Na situação atual, se fizer a proposta como descrevi aqui, vão dizer: você está brincando, sabe quem está no poder?
A esquerda tem imensa dificuldade, apesar de ter várias propostas
surgindo, como a da Fundação Perseu Abramo e outras de estratégia para o
Brasil. Há tempos atrás nós fizemos com Ignacy Sachs e Carlos Lopes uma
proposta com uma visão de elementos básicos para uma economia
funcionar. São 13 eixos, sendo todos já experimentados onde foram
instalados.
O que trava é que não estamos mais numa democracia. Temos decisões
trágicas para o país tomadas por um Congresso eleito de forma ilegal e
com um presidente que tenta salvar a pele, além de uma mídia que bate
palmas. Estamos vivendo uma curiosa estrutura formalmente legal, mas
que, a meu ver, não é democrática.
O senhor enxerga saída a curto prazo?
Não a curto prazo. E a presença de um Trump nos Estados Unidos é
muito ruim para nós, estimula visões racistas, conservadoras e
destruidoras do meio ambiente, veja que se retomou a destruição da
Amazônia... Estamos com grupos nacionais e internacionais que estão se
lambuzando na entrega do petróleo do país. O pessoal diz que voltou o
investimento externo... Claro, estão comprando a preço de banana, se
apropriando do país.
Na realidade, para mim e para outros economistas preocupados com
interesse nacional e não com rentabilidade financeira, é difícil fazer
propostas quando não temos a força política necessária para as mudanças
que temos que fazer. Uma impotência institucional. *Por Glauco Faria para RBA Imagens: Divulgação/Internet |