As mudanças propostas na Nota Técnica, assinala Custódio, abandonam o
conceito de energia elétrica como serviço e bem público e alteram o
atual modelo, implantado pela lei 10.848/2004 e estruturado em torno de
três eixos: universalização, modicidade tarifária e garantia de
suprimento. "Neste modelo, a energia elétrica é um bem público regulado,
não existindo liberdade total de compra e venda. Até existe um mercado
livre de energia, mas, majoritariamente, o modelo é regulado, com preços
definidos pelo setor público. As medidas previstas na nota técnica
objetivam a ampliação e consolidação do mercado livre. Será possível,
entre outras coisas, especular com o preço e a oferta da energia. Esse
novo modelo proposto coloca em risco a segurança energética do país”,
alerta o engenheiro que trabalha no setor elétrico há 30 anos.
As propostas de "aprimoramento do marco legal” propõem a criação de
um ambiente especulativo para o comércio de energia, com a formação de
uma bolsa de energia, com total liberdade de definição de preços pelos
agentes operadores. Isso significa, observa ainda Ronaldo Custódio, que a
operação do sistema elétrico passará a se dar pelo preço e não mais
pelo custo, o que permitirá que a especulação de preço afete a operação
de todo sistema energético.
"Uma coisa é você especular com a venda de uma mercadoria qualquer,
como o sabonete, por exemplo. Como é que você consegue maximizar o preço
de um produto no mercado capitalista? Tendo equilíbrio entre oferta e
demanda. Se eu tiver muita oferta, o preço cai. No setor da energia,
isso é um perigo, pois esse equilíbrio implica o que alguns economistas
chamam de escassez relativa. Você consegue o preço máximo quando há um
princípio de escassez, sem ainda faltar o produto, mas no limite disso
acontecer. Nesta situação, você tem o ganho máximo com aquele produto.
Mas uma coisa é faltar sabonete no mercado, outra, bem diferente, é
faltar energia”. Preço ao consumidor pode aumentar de 5 a 6 vezes
O mercado, lembra o engenheiro, tentou implantar esse modelo do país
na década de 90, mas esse processo foi interrompido pelo governo Lula.
"Lula não rompeu com os contratos existentes, mas reestruturou todo o
setor, mantendo um mercado livre pequeno, sem perder de vista o
fundamento de que a energia é um bem e um serviço público que, portanto,
precisa ser regulado pelo Estado. Segundo esse novo modelo, proposto na
Nota Técnica, o mercado passaria a regular tudo e a estimular a
especulação por meio da criação de uma bolsa de energia. Neste conceito,
está embutida ainda a proposta de privatização de todas as empresas
públicas do setor e também das usinas que tiveram suas concessões
renovadas há pouco tempo. A ideia é vender e dar liberdade de definição
de preço para os novos donos das usinas, o que pode aumentar de 5 a 6
vezes o preço pago hoje pelo consumidor. Esse preço, que hoje é da ordem
de 40 megawatt-hora, poderá passar para algo entre 200 e 250
megawatt-hora. Quem vai ganhar com isso? O dono da usina. Quem pagará? O
consumidor de energia”.
A nota técnica foi colocada em audiência pública que já está aberta a
contribuições e que será encerrada no dia 4 de agosto. A partir dessa
audiência será elaborada uma proposta ao Congresso Nacional,
provavelmente por meio de uma Medida Provisória, prevê Custódio. "A
ideia é estimular a participação de movimentos sociais e da população em
geral nesta audiência pública que até prevê pouco tempo de debate pela
profundidade da mudança. Quem está participando desse debate hoje são,
basicamente, empresas do mercado de energia. Mas as alterações propostas
vão além do mercado de energia, interessando diretamente a sociedade
como um todo”.
"Privatização é o carro-chefe deste modelo”
Na avaliação de Ronaldo Custódio, os projetos do governo José Ivo
Sartori (PMDB) para privatizar todas as empresas públicas de energia do
Rio Grande do Sul se inserem dentro da lógica deste novo modelo que está
sendo proposto. "Há um alinhamento ideológico neste sentido e a
privatização é o carro chefe desse modelo”. Nos últimos anos, assinala
ainda o engenheiro, a presença do capital internacional (especialmente
chinês) no setor elétrico brasileiro vem crescendo muito. "Até aqui,
porém, tivemos a presença do Estado, regulando o setor. Neste modelo, as
estatais cumprem a função de regular os preços e a competição. Ao se
retirar as estatais do mercado e se dar total liberdade de preço,
abrem-se as portas para a instalação de um ambiente especulativo”.
O que está sendo proposto agora, resume, significa o fim da política
energética de Estado no Brasil, que passaria a ser gerida totalmente
pelo setor privado.  "A política energética passará a ser uma política
privada. As empresas privadas que operam no mercado é que decidirão os
rumos do país. A Câmara de Comercialização de Energia Elétrica assumirá a
gestão de todos os contratos e do sistema de transmissão no Brasil. O
que eu e vários especialistas avaliam que irá acontecer é o aumento do
preço da energia e do risco de déficit, pois o Estado perderá a
capacidade de controle”.
Nenhum país adotou um modelo como este, acrescenta Custódio, nem os
Estados Unidos, que têm mecanismos de regulação de preços. "Na década de
90, eles tentaram liberar o mercado, mas depois da grande crise que
ocorreu na Califórnia eles deram uma segurada. Na Argentina, há um
modelo um pouco parecido com esse que querem implantar aqui no Brasil e
veja a crise energética do país. Onde se tentou implementá-lo no mundo, a
experiência foi mal sucedida. Mas, no nível em que está sendo proposto
agora aqui, não conheço nenhum caso”.
Resumo de algumas das principais medidas propostas para o setor elétrico
Liberdade total de compra e venda de energia. implantação do mercado livre total, com consolidação prevista até 2028.
Criação de um ambiente especulativo para o comércio de energia,
com a formação de uma bolsa de energia e total liberdade de preço.
Operação do sistema elétrico pelo preço, e não mais pelo custo.
Especulação de preço pode afetar a operação e alterar a programação
energética.
Extinção do Mecanismo de Realocação de Energia (MRE). A energia
secundária das usinas hidrelétricas, que hoje pertence ao sistema e é
usada para a otimização energética, passará a ser uma mercadoria
comercializada pelo agente privado.
Fortalecimento da Câmara de Comercialização de Energia Elétrica
(CCEE), ambiente controlado pelos agentes de mercado. Todos os contratos
e a gestão do mercado serão centralizados na CCEE.
Privatização das estatais, com incentivo financeiro para sua agilização, até 2019.
Fim dos incentivos, a partir de 2030, às fontes alternativas de energia (eólica, solar, biomassa, etc.) *Marco Weissheimer para Sul21 Foto: Agência da Assembleia Legislativa de SC |