Mais de uma ideia obsessiva o governo interino e seus
apoiadores na mídia não desistem: cortar gastos. Nesta terça-feira (24), Temer
anuncia o pacote de medidas para atingir a meta fiscal. Um dos argumentos
recorrentes para apoiar essa obsessão pela tesoura é que o governo só pode
gastar aquilo que tem. E quase sempre se recorre à metáfora do orçamento
familiar.
O argumento é falso, afirma o economista Alexandre Ferraz,
do Dieese, que trabalha no Escritório Nacional da Central Única dos
Trabalhadores, em Brasília. Leia os principais trechos da entrevista:
É muito comum ouvir economistas, e integrantes do governo
interino, compararem a economia do País, a gestão do Estado, ao orçamento de
uma casa, como se fossem iguais e devessem ser tratadas da mesma maneira. Isso
é verdade?
É uma ideia muito simplista da economia do setor público,
uma analogia primária. É uma tentativa de falar com o público menos
escolarizado. Mas seria mais apropriado comparar com uma empresa.
Qual a diferença nessa outra comparação?
Em comparação com as empresas, a gente sabe que um Estado
não vai propriamente à falência. O Estado tem um milhão de ativos, muitos deles
intangíveis, riquezas naturais gigantescas, e a gente tem de fazer enormes
investimentos pra aproveitar essas riquezas sempre com visão de futuro. Uma
família é muito mais presa ao presente, ao equilíbrio orçamentário mês a mês,
ano a ano. O Estado, devido a essa visão de futuro, muitas vezes tem de fazer e
conviver com desequilíbrios momentâneos, déficits etc, mas planejando que esses
déficits presentes vão levar a superávits maiores, ao desenvolvimento maior no
futuro.
Então, suponho, é falsa a ideia de que o governo tem de,
permanentemente, só gastar aquilo que tem no bolso.
Essa ideia é completamente equivocada. Isso nunca foi
seguido por nenhum país e jamais será seguido.
Eles dizem isso só para justificar cortes de direitos e
políticas públicas?
Isso está muito ligado à ideia de ajuste fiscal. Mas, desde
a crise de 2008, diversos países da OCDE (Organização para Cooperação e
Desenvolvimento Econômico, que congrega os países mais ricos do Hemisfério
Norte, além da Austrália, Nova Zelândia e Coreia do Sul) fizeram seguidos
déficits. Mesmo políticos conservadores, como o recém-eleito primeiro-ministro
do Canadá (Justin Pierre James Trudeau), eleito com a plataforma de fazer déficits
pelos próximos três anos, devido aos investimentos que ele pretende fazer para
que o Canadá volte a crescer e volte a ser um país de Primeiro Mundo, como eles
dizem lá.
Então o déficit não é necessariamente um monstro que vai
destruir a vida dos países.
De forma alguma.
As pessoas em torno do governo interino, ou ilegítimo como
temos tratado, dizem que a Dilma gastou muito. Como é isso?
O déficit, como eu te disse, não é um problema em si. Quando
você faz um investimento em educação, infraestrutura, você precisa zerar seu
déficit futuro e ainda gerar uma renda extra, para o país se desenvolver.
Agora, se você gera um déficit no presente não para gerar investimento
produtivo, ou de qualificação da sociedade, se não gerar uma renda no futuro,
então você usou mal os recursos. Era melhor não ter feito o déficit. Tivemos
vários casos de sucesso, mas tivemos casos de fracasso, também.
Cite um fracasso.
O caso da Sete Brasil (empresa com participação da Petrobras
para atuar no mercado de sondas, que acumulou prejuízos), por exemplo, é um
caso de fracasso. Mas posso citar vários casos de sucesso, como a indústria
naval, o Minha Casa Minha Vida, o Luz para Todos, são investimentos importantes
para o país.
Em conversa com a economista Leda Paulani, ela me disse que
aquele alardeado rombo nas contas no início de 2015 correspondia ao montante
das isenções tributárias dadas às empresas como estímulo à produção. Você
concorda com isso?
Em grande parte concordo com ela. Grande parte do
engessamento do orçamento do governo foi por causa das isenções fiscais que
foram concedidas aos empresários de uma forma frouxa, sem contrapartidas
firmes. Isso se intensificou no governo Dilma, ela quase dobrou as isenções, e
o governo achou que em lugar de investir diretamente, dando dinheiro ao
empresariado, ia fazer um crowd out, iria aumentar o investimento privado,
e isso não aconteceu. Dada à situação de incerteza da economia, o empresariado
simplesmente pegou esse dinheiro e em vez de investir na produção colocou em
títulos públicos.
Ou seja, o empresariado deixou de fazer sua parte numa
intenção que havia por parte do governo.
Exatamente. É como se o empresariado deixasse de cumprir sua
parte no pacto. Em parte também porque o governo foi incapaz de construir esse
pacto, de forma mais firme. Teria sido muito mais produtivo para o governo
gastar esse dinheiro diretamente do que ter repassado aos empresários. É
interessante que para o governo, as isenções são classificadas como "gasto
tributário”. O governo considera um gasto. Se tivesse gastado diretamente,
teria tido muito mais resultado.
Queria também falar sobre a diferença que existe entre
dívida e passivo. Alguns economistas costumam confundir as duas coisas?
Acho que eles não confundem não. O que eu acho que eles têm
insistido é que deve haver uma identidade contábil entre ativo e passivo. O
ativo e o passivo têm de estar em equilíbrio, têm de se anular.
Ficar no zero a zero, é isso?
Exatamente. Acho que tem muita discussão sobre as contas
públicas e desde 2013, quando elas começaram a se deteriorar... Tudo bem, como
eu disse, o déficit não é um mau em si, mas o governo tem de procurar um
equilíbrio, mesmo que seja em longo prazo. Houve um momento em que nós deixamos
de encontrar esse equilíbrio orçamentário, presente e futuro.
Consegue identificar em que momento perdemos esse
equilíbrio?
Em 2014 houve um descasamento, e você percebe bem isso
olhando a dívida bruta e a líquida. A bruta começa a crescer mais que a
líquida. E as pessoas começaram a dizer que o governo estava usando artífices
contábeis para não aparecer a líquida. Então, temos que tomar cuidado com isso
sim.
É o que chamam de contabilidade criativa?
Não sei se é propriamente isso. Acho que o governo tem de
tomar cuidado. A CUT chamou muito a atenção do governo no Codefat (Conselho
Deliberativo do Fundo de Amparo ao Trabalhador), porque o governo tem de tomar
muito cuidado com seus fundos. Nós da esquerda defendemos que o Estado tem de
intervir, mas para isso tem de ter recursos. Se o governo perde capacidade
fiscal, isso é um tiro no nosso pé, porque aí o Estado tem baixa capacidade de
intervenção na economia.
No caso do Fundo de Garantia, a advertência que a CUT fazia
era no sentido de não utilizar os recursos para outras finalidades que não as
originalmente previstas, não é isso?
Exatamente. O governo estava recolhendo a multa de 10% e em
vez de repassar ao fundo, estava utilizando o recurso para fazer superávit
primário e chegou a criar um passivo de R$ 10 bilhões em três anos. O governo
também retardou suas contrapartidas ao Minha Casa Minha Vida, e foi pedindo
empréstimo para cobrir sua parte. Como tudo isso é transparente, os agentes
econômicos vão vendo isso com desconfiança.
Esse caminho escolhido pelo governo Temer, de corte de
gastos, de investimentos públicos, de políticas sociais, vão nos levar aonde? E
qual seria a alternativa?
Claramente, chegamos à necessidade de algum tipo de ajuste.
Mas como esse ajuste estava sendo feito pelo Levy (Joaquim Levy, ex-ministro da
Fazenda) e que será feito agora, promove uma brecada muito forte no país. Na
minha visão, era possível fazer um ajuste de forma mais suave, menos traumática
para a sociedade. Então, acho que o país tinha de fazer duas coisas: primeiro,
assumir que vai passar algum tempo fazendo déficit, como fizeram países da OCDE
sem nenhum trauma, sem também deixar a dívida fugir do controle; então, acho
que algumas reformas são realmente necessárias. Outra coisa, a gente não pode
falar em corte de gastos. Acho que nossa missão é adequar o PIB ao que
determina nossa Constituição. Para isso, acho fundamental repensar a estrutura
tributária, para entregar à população tudo aquilo que ela contratou lá na
Constituição de 88. A elite age de extrema má-fé quando reclama de aumento de
imposto, pois passa a ideia de que o aumento seria para ela.
A gente poderia desonerar o imposto sobre consumo, que onera
principalmente os pobres, a gente poderia inclusive baixar a carga tributária
das empresas, estimulando a produção, mas para isso seria necessário aumentar
outras fontes de arrecadação. Um deles é o imposto de renda, que deveria ser mais
progressivo (quem ganha mais paga mais). E há a nossa jabuticaba
tributária, que é não tributar lucros e dividendos, um presente que o Everardo
Maciel (ex-secretário da Receita do governo FHC) deu para o andar de cima.
A gente sabe que a elite não vive de salário, ela vive de
ganho financeiro, e isso é muito pouco tributado. E fora isso, a gente sempre
falou muito a respeito do imposto sobre grandes fortunas, mas esquecemos de um
que é essencial, que é o imposto sobre herança. Esse imposto é uma alíquota
fixa, não importa se você é rico ou se você é pobre, e é um dos mais baixos do
mundo. Eu estou falando de tributar aqui não o cara que tem uma casa, mas do
cara que herda uma holding, que tem 30 mil imóveis. A gente tem de dizer para a
população que não se quer pegar nada dela. Mas essa batalha a gente ainda não
ganhou. Temos que mostrar que quem tem de pagar o pato é um pequeno grupo de 71
mil famílias, identificadas pela Receita Federal. *CUT
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