Testemunhos de mulheres que lutaram contra a ditadura e de
mulheres que estão envolvidas hoje, em diferentes frentes, com o enfrentamento
de diversas formas de agressão relataram o exercício desse tipo de
violência, acompanhado de práticas de tortura física e psicológica.
Suzana Lisboa, coordenadora da Comissão de Familiares de
Mortos e Desaparecidos Políticos, destacou o papel fundamental que as mulheres
tiveram no enfrentamento da ditadura implantada após o golpe de 1964. Militante
da Ação Libertadora Nacional (ALN), Suzana Lisboa viveu na clandestinidade
entre 1969 e 1978, quando começou a participar dos movimentos de anistia.
Ela relatou que 45 mulheres foram assassinadas na luta
contra a ditadura. Duas gaúchas entre elas: Alceri Maria Gomes da Silva,
nascida em Cachoeira do Sul, e Sonia Maria de Moraes Angel Jones, nascida em
Santiago do Boqueirão. "A primeira atitude contra as mulheres presas era tirar
a roupa delas. A partir daí, iniciava-se uma sessão de violência sexual e
tortura, que era realizada principalmente nos órgãos genitais”, contou.
"Vivemos uma situação de terror”, disse Suzana Lisboa,
estabelecendo uma relação entre o período da ditadura e a conjuntura política
atual do Brasil. "Tenho muito medo do que vem por aí. Vivemos a ditadura e não
conseguimos que essa história fosse realmente contada. É a impunidade desses
crimes que alimenta a violência cotidiana que é cometida contra os pobres desse
país”.
Para ela, o trabalho da Comissão da Verdade foi importante
para espalhar essa história, mas não conseguiu fazer a tarefa principal que era
descobrir os corpos de 150 desaparecidos. "Mais do que nunca precisamos contar
e divulgar tudo o que aconteceu para impedir que aconteça de novo”, defendeu.
Testemunho semelhante foi feito por Ignez Maria Serpa,
Martinha, que também participou da resistência contra a ditadura, sendo presa e
torturada. "Quero dar aqui um depoimento de quem sentiu na carne o ódio de uma
ditadura. Fui presa em 1970 e passei vários meses sendo torturada. Como disse a
Suzana, a primeira coisa que faziam com as mulheres era deixá-las nuas e
aplicar choques nos órgãos genitais.Em alguns casos, as mulheres eram
torturadas junto com seus companheiros”.
Ignez Maria Serpa também manifestou preocupação sobre o
presente. "Já estamos vivendo um processo de exceção e uma ditadura camuflada
que ainda não mostrou todo o seu viés repressor, mas está a caminho. Tenho
muito receio do que vem pela frente”.
Presidente da Comissão de Cidadania e Direitos Humanos, o
deputado Jeferson Fernandes (PT) destacou a importância da resistência contra o
autoritarismo também no terreno da memória. "Ainda há quem diga que não houve
golpe em 64. As cenas que vimos no final do ano passado, aqui na Praça da Matriz,
durante a votação do pacote do governador Sartori, lembraram muito imagens do
golpe de 64 e da ditadura. O golpe atual tem uma máscara institucional, mas
quando é necessário ele mostra sua verdadeira cara. Mesmo nós, deputados,
tivemos dificuldade para entrar na Assembleia que ficou cercada pela Brigada
Militar naquele período”, lembrou.
Na mesma linha, o deputado estadual Pedro Ruas (PSOL) chamou
a atenção para a diferença existente entre a velha e a nova direita. "A velha
ditadura assumia os crimes da ditadura e procurava justificá-los. A nova
direita tem o requinte de negar os fatos ocorridos. O incrível é que muita
gente acredita nisso”.
Ex-vereadora em Porto Alegre, feminista e ativista de
Direitos Humanos, Helena Bonumá apontou como um avanço na luta contra o
autoritarismo do presente a organização e mobilização dos movimentos de
mulheres. "As mulheres estiveram na linha de frente do movimento que enfrentou
a ditadura no processo da anistia. Estamos vendo esse mesmo protagonismo agora
na luta contra o golpe e a destruição de direitos com o avanço da compreensão
de que as lutas contra o machismo, o patriarcado e as desigualdades do
capitalismo estão entrelaçadas. O patriarcalismo tem raízes profundas na
sustentação do regime de desigualdade que marca o capitalismo”.
Coordenadora do Centro de Referência em Direitos Humanos da
Defensoria Pública do Rio Grande do Sul, Mariana Py Cappellari fez um elo entre
a violência cometida pela ditadura e a permanência dessas práticas no presente.
"Não vivenciamos uma ruptura democrática. Talvez essa seja a razão do que está
acontecendo hoje com a irrupção de movimentos fascistas no país, a permanência
do autoritarismo e a institucionalização da tortura”.
Cappellari relatou que, de um total de mil expedientes abertos
no Centro de Referência em Direitos Humanos, 700 tem a ver com violência sexual
e tortura. "O que mais chama a atenção nos relatos da Suzana e da Martinha é
que isso ainda está acontecendo. As denúncias de abuso sexual são crescentes e
100% delas envolve mulheres até 21 anos de idade”.
Outra violação de direito das mulheres no presente foi
relatada pela advogada Jucemara Beltrame. "Neste exato momento em que estamos
aqui debatendo, em várias regiões da cidade mulheres estão sofrendo. Não
ficamos sabendo disso pois a imprensa não se interessa por esse sofrimento”.
Ela relatou um problema que já está afetando milhares de pessoas na Capital.
Porto Alegre tem cerca de 102 mil famílias inscritas no Cadastro Único, que dá
acesso a mais de 18 benefícios, entre eles o Bolsa Família. Integram esse
universo cerca de 90 mil mulheres, que são titulares do programa.
Até o governo Dilma, essas famílias passavam por uma
averiguação do cadastro de dois em dois anos. No governo Temer, passou para
quatro vezes por ano. A Prefeitura de Porto Alegre está negando esse direito a
muitas famílias ao não colocar uma estrutura de entrevistadores sociais para
atender a essa demanda de renovação do Cadastro Único.
Silvia Ellers, professora da escola "Ditador Costa e Silva”,
como fez questão de dizer, denunciou um processo
de perseguição que estaria em curso na escola por conta do projeto "De
Costa para a Ditadura”, criado em 2009 para resgatar a memória do período da
ditadura e questionar o nome do ditador escolhido para "homenagear” a escola.
José Luis Morais, professor de História, foi desligado da escola no dia 2 de
março, após quase oito anos de atividades.
"Houve uma reação da direção da escola, junto com a 1ª
Coordenadoria Regional de Educação e com a Secretaria de Educação, que tentaram
nos convencer a ‘esquecer o passado´, pois, segundo eles, o nosso projeto
estaria causando desconforto na comunidade. A Lei da Mordaça já está sendo
aplicada na prática”. O deputado Pedro Ruas destacou o surrealismo da situação:
"Pediram para um professor de História esquecer o passado”.
A estudante Manuela Duarte, que participou do movimento de
ocupações de escolas em 2016, relatou episódios de repressão policial vividos
no passado, como os das ocupações da Secretaria Estadual da Fazenda (Sefaz) e
da Assembleia Legislativa. Ela destacou como duas conquistas desse movimento o
surgimento de um sentimento de luta entre os estudantes e a retomada da
bandeira feminista que apareceu com força em quase todas as ocupações.
O crescimento da repressão e o endurecimento do processo do
golpe atual também foram enfatizados por Laura Sito, estudante de Jornalismo da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Essa violência, assinalou,
está atingido especialmente a população negra. "Hoje, no Brasil, cerca de 77%
dos jovens assassinados são negros. Em Porto Alegre, onde a população negra é
de aproximadamente 20%, 70% dos jovens assassinados são negros,” exemplificou.
Ao final do encontro, acolhendo sugestão feita por Miguelina
Vecchio, da Ação da Mulher Trabalhista, o deputado Jeferson Fernandes anunciou que
pretende organizar um novo encontro reunindo diferentes gerações de mulheres
envolvidas em lutas sociais para levar esses testemunhos para um público mais
amplo. "Estamos vivendo esse autoritarismo no presente”, justificou. *Marco Weissheimer - Sul21 |