As revistas seguem alienadas. Tivemos três fins de semana
após o crime socioambiental, ocorrido no dia 5 de novembro. Nem por isso o tema
mereceu alguma manchete de Veja, Época ou IstoÉ. Claro que o tema está lá, mas
de forma protocolar. Os jornais até acordaram um pouco, diante da viralização
do tema na internet. E estão cumprindo (ainda que em fragmentos, com peças
isoladas de um quebra-cabeças) parte de sua função. As nossas revistas
panfletárias, porém, não estão interessadas em contar à nossa classe média
distraída – mas contar com todas as letras – que estamos diante de um dos
episódios mais emblemáticos deste nosso capitalismo sôfrego, particularmente
inconsequente. E violento.
Sim, as mineradoras fazem estragos por todo o mundo.
Inclusive a Vale e a BHP, as maiores ao lado da Rio Tinto. O que não nos impede
de constatar que as nossas publicações tipicamente vestais (essas que fazem
capas sobre corrupções específicas de grupos políticos específicos) estejam
tratando o caso de Mariana de forma secundária, como se fosse um detalhe – um
desastre renovável. A Globo multiplicou os minutos sobre as mortes na França e
parece sem fôlego para manter a catástrofe brasileira no noticiário. Mas não é
só isso. Há um problema de postura. Não veremos o William Waack espumando por
causa dos povoados arrasados e das espécies extintas. Não veremos analistas
econômicos conectarem as vidas destruídas de pescadores (ou camponeses) à doce
vida dos sócios da Vale.
E, portanto, no que se refere ao ambiente, o jornalismo
brasileiro ganha a sua Escola Base. Mas às avessas: por falta de acusação, por
falta de ímpeto de não somente constatar a responsabilidade da Samarco (Vale,
BHP), mas constatar com a capacidade exclamativa que demonstra em outras
situações. E sem que haja esforço de costurar uma narrativa maior, de
questionar um sistema predador, que libera nossos recursos naturais para o
saque bilionário por um punhado de empresas, livres para acumular (com fartas isenções
fiscais) e poluir. Sem que se nomeie com todas as letras o partido – o PMDB –
quecontrola o setor da mineração no país, amplamente financiado pelas
próprias mineradoras. Quantas vezes o leitor ouviu o nome do PMDB em meio a
essa lama toda?
Demonizações seletivas
A Escola Base foi aquele caso em São Paulo em que donos de
uma escola infantil foram acusados de abuso sexual. A imprensa foi histérica a
respeito (imaginem se o acusado fosse o dono de uma rede gigantesca de escolas
privadas) e teve de fazer, tempos depois, ummea culpa: eles eram
inocentes. Ummea culpaque simplesmente não é feito em relação aos
linchamentos diários, espalhados por todo o país, de acusados – pobres, negros
– de outros tipos de crime. A imprensa brasileira ainda é protagonista de
espetáculos medievais de demonização de indivíduos, satanizações de acusados
que servem também para justificar o tratamento excludente a grupos sociais
inteiros. "Eles que não invadam nossa praia”.
E, no entanto, essa imprensa não se move (ou se move em
círculos, sem ser incisiva) quando os suspeitos ou criminosos têm colarinho
branco, CNPJ e gigantescas equipes de marketing. Briga com o porteiro, nunca
com o patrão. Nossa elite não será algemada nem tratada como escória. Nem que
seja ela a responsável por poluição ambiental e roubo de terras, destruição de
biomas e especulação financeira assassina, nem que patrocine a crise, seja ela
mesma a crise, nem que ela seja notoriamente atrasada (ou mais despudorada) em
relação às demais elites do capitalismo mundial – porque ainda mais cínica e
impune. Os cárceres estarão cada vez mais entupidos dos pequenos traficantes de
drogas. Teremos1 milhão de presos, 1 milhão de inimigos convenientes.
Estamos no país onde a ministra da Agricultura vai à
Ásiae se deslumbra com mármores e tapetes, em uma missão oficial para
promover o agronegócio brasileiro, esse agronegócio primo da mineração
predadora, ambos a esmagar as florestas restantes, os povos indígenas e as
populações tradicionais. E lá estava ela na Índia, toda alegre e intensa,
vendendo as supostas maravilhas de uma nova fronteira agrícola, a
doMatopiba (Maranhão-Tocantins-Piauí-Bahia), onde a família Marinho tem
terras e onde o Cerrado ganha sua destruição diária, com o aval de governo e
oposição, sem holofotes, sem proteção legal, sem lama, sem espetáculo – sem uma
narrativa, uma cobertura diária que ao menos coloque em dúvida esse modelo,
essa lógica.
Uma das coisas mais curiosas da imprensa brasileira a
serviço da plutocracia é que ela não se dá conta de nossos rombos
socioambientais nem quando o PT também deixa ali sua assinatura, nem quando o
governo federal que fustigam tenha papel importante nessa destruição. A não ser
que pretendam desprestigiar uma estatal. Porque o que querem é apenas colocar
outro grupo político no poder, uma espécie de política de substituição de
destruições, de preferência sem algum verniz compensatório, alguma inclusão em
meio à implosão. É por isso que as próximas capas da Veja vestirão como
presidiários apenas aqueles que a revista julgar convenientes; nunca os
plutocratas com pedigree. Latifundiários da comunicação a minimizar a dor de
multidões e a sacralizar o ódio das minorias. Em nome de seus pais, de seus
filhos e apesar da lama no mar do Espírito Santo.
*Alceu Luís Castilho é jornalista e autor do
livro"Partido da Terra – como os políticos conquistam o território
brasileiro”
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