O preconceito de raça tem raízes profundas, do tempo em que
o homem habitava as cavernas. Embora sua origem tenha explicação na necessidade
de defesa para garantir assim a sobrevivência, a discriminação resulta de
aspectos biológicos articulados com sociais e ambientais ao longo do tempo. No
século 19, quando apenas os povos europeus eram considerados civilizados, raça
era considerada fundamental para definir o potencial "civilizatório” de uma
nação. Segundo a teoria predominante na Europa na primeira metade do século 19,
o evolucionismo social, a espécie humana é uma só, mas se desenvolveria em
ritmos desiguais e passaria pelas mesmas etapas até atingir o último nível que
é o da "civilização”.
No topo estaria a "civilização” europeia e na base, os povos
negros e indígenas. Uma teoria criticada por considerar apenas critérios
ocidentais de progresso.
A partir da independência do Brasil, em 1822, a identidade
nacional foi para o centro do debate. Estudiosos estrangeiros viam o país como
um laboratório racial por causa da miscigenação. O naturalista alemão Von
Martius, ao defender que a trajetória social brasileira funde o branco, o negro
e o índio, venceu em 1844 o concurso "Como escrever a História do Brasil”, de
um recém-criado Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.
Com o fim da escravidão, em 1888, e a proclamação da
República, em 1889, é concedida igualdade jurídica a todos os brasileiros. Em
1890, é promulgado o primeiro Código Penal republicano. Quatro anos depois, o
médico baiano Nina Rodrigues publicaAs Raças Humanas e a Responsabilidade
Penal no Brasil. Sua intenção era definir critérios diferenciados de cidadania
para negros e brancos.
Ganhava força o determinismo racial, teoria criada na
segunda metade do século 19 por cientistas europeus. Para eles, a raça
determinava as características físicas, o caráter e o comportamento dos
indivíduos. A preservação de "tipos puros” seria o remédio contra a degeneração
racial e social causada pela mistura de raças. Temiam as características
físicas e psicológicas do mestiço, até então desconhecidas. Acreditavam que a
miscigenação poderia inviabilizar o Brasil como nação.
O livroA Curva Normal(1994) tentou consolidar um
suposto conceito de raça. Segundo seus autores, os norte-americanos Charles
Murray e Richard Herrnstein, a inteligência seria mais generosa entre os
brancos, especialmente os mais ricos. Sem fundamento científico, o trabalho
remete ao pensamento da metade do século 19, aferindo os "limites” da raça
negra, biologicamente incapaz de se adaptar à "civilização” que se impunha.
A ciência, no entanto, mostra que existe apenas uma raça
humana: a que surgiu na África. Em 2002, pesquisadores norte-americanos,
franceses e russos se dedicaram a comparar 377 partes do DNA de 1.056 pessoas
provenientes de 52 populações de todos os continentes. Concluíram que 95% da
diferença genética entre os seres humanos está nos indivíduos de um mesmo
grupo, e que a diversidade entre as populações é responsável por menos de 5%.
Ou seja, o genoma de um africano pode ter mais semelhanças com o de um
norueguês do que com o de alguém que tenha nascido na África, de família negra.
A descoberta veio a confirmar que raças são populações que
apresentam diferenças significativas quanto à frequência de seus genes, embora
exista entre diferentes raças um grande número de genes em comum, como aqueles
que formam o fígado, por exemplo, conforme explica o pioneiro da genética
humana no Brasil, Oswaldo Frota-Pessoa (1917-2010).
Para ele, o conceito de raça é comparativo porque a
"raciação” é um processo longo e contínuo, produzindo raças dentro de raças, é
o grau de diferença entre as raças varia. E mesmo que um grupo étnico indique o
conjunto de suas características culturais e genéticas, as raças não são
estáticas porque representam estágios de evolução em constante mudança.
O bem da mestiçagem
O determinismo racial começou a ser descartado a partir de
1933, com a publicação deCasa Grande & Senzala, de Gilberto Freyre. O
mestiço é alçado à principal marca da originalidade nacional e os símbolos
étnicos negros são transformados em símbolos nacionais. Exemplo disso é o samba
carioca, consagrado no país e no exterior como ícone da diversidade racial e
cultural. Surgido na década de 1910, nos redutos negros dos bairros da Saúde,
Gamboa e Cidade Nova, nas casas das lendárias "tias baianas”, como a famosa Tia
Ciata, o samba foi ganhando espaço no Brasil e no mundo. Tanto que, em 1922,
Paris recebeu o conjunto musical Oito Batutas, do qual faziam Pixinguinha e
Donga – que assina ao lado de Mauro de Almeida a autoria dePelo Telefone(1917),
o primeiro samba gravado.
A obra de Freyre foi divisor de águas para o entendimento do
racismo como subproduto de conflitos de classes, pondo abaixo qualquer
interpretação de ordem biológica, genética ou evolucionista.
Último país a abolir a escravidão, o Brasil ainda preserva o
preconceito contra afrodescendentes, embora em diversas pesquisas a maioria
declare não ser racista. O racismo definido pelo cientista social Florestan
Fernandes (1920-1995) como "o preconceito de ter preconceito” leva muita gente
a chamar uma pessoa negra de mulata, escurinha ou moreninha.
A partir de 1989 o racismo passou a ser um crime
inafiançável. A pretensa igualdade racial, porém, não se ampara no cotidiano.
Os indicadores sociais também não são um atestado de fé para nossa democracia
racial. O Censo do IBGE 2010 mostra que 52% da população se autodeclara negra e
parda. Mas do total dos 10% mais pobres do país, 70% são negros. A renda média
mensal dos que não têm instrução é de R$ 1.284 entre os brancos e R$ 1.038
entre os negros. Entre as brancas, essa média é de R$ 925, e de R$ 658, para as
negras. Segundo um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea),
em 2014 a chance de um adolescente negro ser assassinado era 3,7 vezes maior do
que a de um adolescente branco.
Algumas iniciativas vêm sendo tomadas para combater o
racismo. Há cinco anos foi promulgado o Estatuto da Igualdade Racial, que
determina a promoção da igualdade de oportunidades. Por meio dele foi criado o
Sistema Nacional de Promoção da Igualdade Racial, para articular políticas das
três esferas do governo, as cotas nas universidades e no serviço público, além
da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra.
Há ainda a Lei 10.639/03, que determina o ensino da História
e Cultura Afro-Brasileira e Indígena nos currículos de Ensino Fundamental e
Ensino Médio nas escolas. É possível que a partir do momento em que seja posta
em prática, a disciplina possa contribuir com a formação de uma nova visão a
respeito de nossa formação. Como a lei mal saiu do papel para a maioria das
escolas, essa omissão ilustra tanto o racismo oculto brasileiro como o papel
omisso do sistema educacional em suas origens. *Rede Brasil Atual
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